O turismo como via de engrandecimento para as cidades: Dilemas e estratégias de desenvolvimento de quatro cidades médias da Península Ibérica
Comunicação apresentada no VII Congresso Português de Sociologia
Sociedade, Crise e Reconfigurações
Porto, 19 a 22 de Junho de 2012
Resumo:
Os discursos que vêm sendo produzidos sobre as cidades no mundo ocidental tenderam a perpetuar a ideia de que as cidades deveriam ser coisas grandes, independentemente de serem extraordinárias ou terríveis na sua grandeza. A literatura produzida pela sociologia urbana concedeu desde cedo primazia a determinadas geografias centrais e privilegiadas do ponto de vista socioeconómico – a grandes cidades encaradas pelos teóricos como os casos mais tipicamente urbanos e, por isso, mais representativos das cidades de todo o mundo. A assunção desta possibilidade de generalização a outros contextos implicou, por seu turno, um esquecimento razoável das cidades de pequena e média dimensão. Nesta comunicação pretende-se, justamente, discutir um conjunto de interrogações teóricas sobre as cidades que não são grandes e as várias formas como tais conceptualizações são diversamente percetíveis nas realidades físicas e simbólicas destas cidades.
Partindo de investigação em curso acerca do papel do turismo na (re)construção das paisagens, das imagens e da identidade cultural das cidades, equaciono a pequenez de tamanho por comparação ao engrandecimento que algumas cidades perseguem. Faço-o por referência a uma atividade específica – o turismo – nas suas componentes económica, cultural e simbólica, e com recurso a situações exemplares dos contextos urbanos português e espanhol – onde, a uma escala comparativa global, existem sobretudo pequenos aglomerados urbanos.
Centrando a atenção em cidades que estão geralmente ausentes da literatura globalizada dos estudos urbanos, e considerando a componente turística de cada uma, discuto os modos como (re)inventam, justificam ou perseguem formas de grandeza ou pequenez. Defendendo a hipótese de que o turismo permite às cidades alcançar uma influência que supera o seu tamanho geográfico, considero alguns materiais de promoção turística que, descrevendo cidades idealizadas e apresentando-as de forma atrativa, as inscrevem em espaços mais vastos, enunciando formas de engrandecimento e valorização que as colocam para além da sua dimensão física e material mais imediata. Procura-se assim problematizar o estatuto, as funções e as possibilidades que o fenómeno turístico encerra em cidades pequenas – cidades que entre a grandeza cosmopolita das metrópoles e a proximidade ao rural mais localista, enfrentam constantemente desafios e dilemas entre a possibilidade de crescimento e a conservação da sua pequenez.
1. Introdução
Nesta comunicação parto da premissa, defendida por vários autores, de que os discursos sobre as cidades tenderam a perpetuar a ideia de que elas deveriam ser coisas grandes, independentemente de serem extraordinárias ou terríveis na sua grandeza. Ao contrário, tratarei, aqui, de cidades que, por serem de pequena ou média dimensão, têm estado frequentemente ausentes da literatura mais globalizada dos estudos urbanos. Recorrendo a exemplos de quatro cidades médias da Península Ibérica – Braga, Coimbra, Salamanca e Santiago de Compostela – pretendo equacionar a modesta dimensão geográfica destas cidades por comparação ao engrandecimento que me parece que elas perseguem.
A minha hipótese é a de que o turismo permite que as cidades alcancem uma influência que supera o seu tamanho e, por isso, discuto os modos como (re)inventam, justificam ou perseguem formas de grandeza que ultrapassam os seus contextos geográficos mais imediatos.
2. Cidades de pequena e média dimensão
A literatura produzida pela sociologia urbana vem concedendo primazia a determinadas geografias centrais e privilegiadas do ponto de vista socioeconómico – Berlim e Manchester, Chicago e Los Angeles foram, desde cedo, grandes cidades encaradas pelos teóricos como os casos mais tipicamente urbanos e, por isso, mais representativos das cidades de todo o mundo. A admissão desta possibilidade de generalização a outros contextos implicou, por seu turno, um esquecimento razoável de outras cidades: na argumentação de Jennifer Robinson, as cidades irrelevantes ou, nas palavras de C. Fortuna, as cidades normais, cidades asiáticas, africanas ou latino-americanas, mas também das pequenas e médias cidades que, embora existam por todo o mundo, não conseguiram ainda conquistar um lugar de relevo nas agendas de investigação mais divulgadas.
Na verdade, uma parte substancial da literatura dos estudos urbanos produzida sobre a temática das cidades de pequena e média dimensão consiste em estudos de casos mais ou menos isolados de cidades que, porventura, são pequenas ou médias. Isso é claramente diferente de uma investigação sistemática baseada numa tentativa de problematização teórica e conceptual mais ampla e profunda acerca das características, condições, dilemas e estratégias das cidades pequenas e médias, que possibilite a superação de conceções mais imediatistas, nomeadamente, da cidade pequena como imagem idílica da qualidade de vida, proximidade na vizinhança, entreajuda, segurança e qualidade ambiental – enfim, de tudo o que, grosso modo, se opõe à conceção, também linear, das grandes cidades.
Algumas destas cidades de pequena e média dimensão são vistas como se permanentemente enfrentassem problemas e como se elas próprias fossem problemas, resultantes da reestruturação das economias e das geografias nas últimas décadas.
Mas poderá a sua condição geográfica ser transformada numa vantagem para estas cidades? Serão estes lugares pequenos ou médios apenas em consequência dos discursos sobre a grande cidade – esses discursos que fazem as cidades de pequena e média dimensão parecer inadequadas, subdesenvolvidas ou retardadas?
Embora estas questões se revelem de extrema importância, elas parecem levantar outras tantas, a montante, acerca dos diversos modos para medir grandezas urbanas e das intenções e dos projetos para essas cidades. O que são cidades pequenas e médias? Que formas para medir o tamanho das cidades são úteis e pertinentes? Será que as aspirações de representantes políticos, gestores e planeadores das cidades pequenas e médias passam mais pelo engrandecimento ou pela manutenção da pequenez num mundo globalizado? E nos casos em que a ambição é a do engrandecimento, que fatores concorrem para isso?
Quanto às formas de categorização do tamanho das cidades, gostaria de referir, por exemplo, que, de acordo com a tipologia proposta por Saskia Sassen, Coimbra, Braga, Salamanca e Santiago de Compostela seriam cidades periféricas: cidades que se tornaram secundárias ou mesmo marginais com a evolução da economia mundial.
Numa outra classificação, a desenvolvida por Peter Hall com base em fluxos de pessoas, de informação e de concentração de negócios, as quatro cidades em estudo, acolhendo entre cerca 100.000 e 250.000 habitantes, não seriam mais do que cidades provinciais. De resto, segundo este esquema e a uma escala comparativa global, Portugal e Espanha não são mais do que dois países caracterizados sobretudo por pequenos aglomerados urbanos.
Em vários países europeus, nos EUA, no Canadá, no Brasil e no Japão vêm sendo elaboradas, há várias décadas, diversas tipologias de cidades que, ora colocam às cidades pequenas o patamar mínimo de 2.000 habitantes (França), ora o de 30.000 (Japão). O mesmo acontece com as cidades médias, que tanto são as que têm entre 100.000 habitantes e um milhão (definição do Banco Mundial e da ONU), quanto as que têm entre 50.000 e 500.000 habitantes (EU).
Ainda que sejam úteis para uma primeira caracterização das cidades, essas tipologias e os dados sobre volumes ou densidades populacionais apenas revelam grandezas demográficas ou territoriais. No entanto, e na senda de vários autores (D. Bell e M. Jayne; Jean-Luc Roques; Eduarda Marques da Costa), não me parece que o tamanho deva ser encarado simplesmente como uma característica absoluta. Em vez disso, observar uma cidade pequena ou média implica um olhar diferente daquele com que se olham as cidades grandes ou as metrópoles.
Tal olhar, distinto e atento a outras dimensões das cidades, justifica-se, do meu ponto de vista, pelo facto de a condição de cidade pequena ou média estar tão relacionada com o seu tamanho, a sua densidade ou crescimento, como com o alcance e a influência que consegue atingir, isto é, com a medida em que consegue sair para fora de si própria ou, como eu prefiro, com o seu engrandecimento. Aliás, é este o entendimento de Michel Gault, quando propõe a substituição da noção de cidade média pela de cidade intermédia, com a sua vertente qualitativa a remeter para um lugar a conquistar e um posicionamento a ocupar.
A este respeito, gostaria de referir um artigo sobre a transformação das paisagens urbanas de cinco cidades portuguesas, onde se incluem Braga e Coimbra, da autoria de C. Fortuna e P. Peixoto, onde os autores sustentam que cada uma reclama para si um caráter singular, reivindicando “um lugar específico e marcante na história do país”. Braga, que lutou contra as invasões francesas, e Coimbra, politicamente contestatária, “não são apenas cidades com uma história, são também cidades que fizeram a história de um país”.
Não será desadequado, então, afirmar que Braga e Coimbra, como muitas outras cidades pequenas e médias em Portugal, em Espanha e no resto do mundo não se reveem no seu tamanho geográfico limitado e mobilizam recursos variados para se afirmarem e justificarem a sua inclusão em contextos e fluxos para além dos locais, regionais e mesmo nacionais. O mesmo poderia ser dito sobre Salamanca e Santiago de Compostela, cidades que não se veem apenas como cidades, mas antes como lugares que marcaram a história cultural e religiosa de Espanha e que hoje se exibem num mundo globalizado cada vez mais competitivo.
Nos casos em que as cidades ambicionam ultrapassar a sua condição territorial mais imediata e ampliar o seu campo de atuação, que estratégias lhes darão a possibilidade de engrandecimento, ou de saírem para fora de si próprias? À partida, é possível identificar duas agendas principais que, sobretudo desde os anos 1980, têm estado estrategicamente comprometidas com o engrandecimento das cidades no mundo ocidental: a cultura e a criatividade, ou, dito de outra forma, os projetos de regeneração por via da cultura e do ideal de cidade criativa.
3. O turismo como via de engrandecimento das cidades
Nessas agendas, o turismo tem surgido, explícita ou implicitamente, como uma das vias para o engrandecimento. O seu interesse estratégico, principalmente em cidades pequenas e médias, viu-se em muitos casos acentuado em virtude de os poderes e os agentes económicos locais verem nele um dos setores capazes de recuperar a competitividade e o dinamismo económico perdidos na sequência dos processos de desindustrialização.
Hoje, podemos admitir que o turismo contribui para a re-territorialização espacial dos lugares, de tal forma que o tamanho pode ser redefinido para significar não apenas as características físicas de um lugar, mas também a capacidade de liderança económica e de criação de imagens atrativas mais amplas do que a dimensão geográfica poderia supor. Geridos e promovidos eficazmente, os lugares podem tornar-se muito maiores do que geograficamente são. Como se justifica, então, pelo turismo a grandeza de cada cidade?
Quando considerado como um modo de engrandecimento das cidades, o turismo está intimamente relacionado com o trabalho simbólico que consultores, promotores turísticos, planeadores e marketeers vão desempenhando na (re)invenção de diferenças competitivas para as cidades, cujos objetivos passam pelo posicionamento nos mercados do turismo e pela criação de uma reputação aliciante junto de potenciais consumidores. Seguindo esta lógica, a grandeza das cidades deverá ser medida por referência ao seu potencial de oferta de experiências e serviços turísticos no mercado, mas também pela criatividade dos atores que se entregam à construção de narrativas e imaginários urbanos aliciantes e, por fim, pela sua reputação, ou seja, pelo reconhecimento do valor simbólico que lhes é atribuído pelos turistas.
Com o objetivo de apresentar as cidades de forma atrativa e inscrevê-las em fluxos mais vastos, os promotores das cidades enunciam formas de engrandecimento e valorização que as colocam para além da sua dimensão física e material. Nos quatro contextos em análise, uma dessas formas de valorização consiste num investimento na reputação das cidades, através do uso de uma retórica da antiguidade, enquanto característica marcante da identidade das cidades, sendo usada não só “como estratégia de afirmação de uma identidade sólida e estável que é legitimada pela história”, mas também “como um factor de diferenciação” (Fortuna e Peixoto, 2002). À antiguidade juntar-se-á, no caso de Coimbra e Salamanca, a importância das instituições universitárias, enquanto em Braga e em Santiago a exaltação se faz por via da religião e da espiritualidade.
Este tipo de construções discursivas (ver slide) permite perceber a discrepância que existe entre a modesta dimensão territorial destas cidades e a grandeza de reputação que os promotores turísticos ambicionam para elas. São cidades médias, com uma posição marginal nos fluxos económicos globais mas que, dependendo da criatividade dos seus promotores, podem tornar-se o principal centro religioso em Portugal, ou o segundo centro de peregrinação mais importante da Europa, a mais antiga cidade universitária portuguesa ou a sede da mais antiga universidade da Península Ibérica.
Alguns dados sobre procuras turísticas nestas cidades apontam justamente para esse engrandecimento, se se atentar, por exemplo, na proporção de hóspedes estrangeiros que cada uma acolhe – dados que embora grosseiros permitem imaginar que qualquer uma das quatro cidades está inserida em fluxos turísticos que ultrapassam os respetivos limites nacionais e que permitem também perceber que, quando considerada a sua reputação, Santiago de Compostela e Salamanca revelam lugares de maior destaque do que Braga e Coimbra.
Naturalmente, e em termos da procura turística, tudo isto são apenas hipóteses que enunciam um terreno de pesquisa a explorar com mais profundidade, já que é muito escassa a informação disponível sobre o modo como, nas suas perceções e avaliações, os turistas constroem a reputação destas cidades.
4. Considerações finais
Quero concluir com a ideia de que as atividades turísticas são hoje encaradas como potenciadoras de revitalização e desenvolvimento social e económico dos territórios urbanos. Os processos de recriação de imagens e narrativas urbanas, associados ao desenvolvimento do setor turístico, são cada vez mais relevantes, tanto para as experiências turísticas como para as formas como as cidades redefinem as suas identidades, vêem definidas as suas agendas políticas, se reorganizam material, simbólica e imageticamente e se posicionam face a outras cidades.
Tenho procurado perceber se as cidades pequenas e médias revelam ou não aspirações de engrandecimento e se, por via do turismo, elas são ou não capazes de contornar alcançar uma influência maior, inscrevendo-se e participando de fluxos e espaços socioeconómicos, culturais e simbólicos mais amplos. Procuro também mostrar que Braga, Coimbra, Salamanca e Santiago de Compostela não são apenas cidades médias. São cidades que pretendem conquistar um lugar num sistema urbano globalizado e arriscam fazê-lo por via do turismo. Pela promoção turística tentam alcançar o estatuto de ex-libris religiosos, universitários, históricos ou patrimoniais. E, porque o marketing turístico permite que uma cidade se projete estrategicamente numa dimensão muito maior do que ela própria, são cidades que transbordam para fora de si próprias e, nesse sentido, se projetam no plano do imaginário universal.
Através do turismo, cidades pequenas e médias ultrapassam a sua modesta dimensão territorial e, ainda que somente por essa via, são de alguma forma cidades globais.
Versão completa e citável deste texto em:
Gomes, Carina Sousa (2012), "Grandezas e hierarquias na ordem urbana: O turismo e as pequenas cidades na Península Ibérica", in Rui Jacinto (org.), Patrimónios, Territórios e Turismo Cultural: Recursos, Estratégias e Práticas. Guarda: Centro de Estudos Ibéricos e Âncora Editora, 57-76.
Olá Carina,
ResponderEliminarEstou escrevendo minha monografia em Geografia, cujo tema versa sobre as implicações do turismo na dinamização do espaço geográfico em cidades de pequeno porte, como Porto do Mangue (RN-Brasil). Seu texto será de grande serventia para novas reflexões. Saudações.
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Luis F. F. Barros (Geógrafo)
Natal/RN - Brasil
Olá Luis,
ResponderEliminarobrigada pelo seu comentário. Bom trabalho e felicidades para a sua monografia.
Cumprimentos.
Por experiencia, nesses 42 anos de atividades, trabalhei em inúmeras cidades de pequeno e médio porte e a maior dificuldade é a mental, pelo processo colonialista e ou de dominação dos grandes centros, normalmente amparado em midia multifacetada e sempre querendo ditar a "moda", mas a tal da moda, está na qualidade e satisfação de viver e bem. As pequenas cidades e ou médias, que contam com potencial natural, histórico, gastronomica, folclórico, entre outros, devem saber valorizar e explorar sustentavelmente esses atrativos, ganhar seu sustento, mas o grande mote é crescer sem quebrar o élo do diferencial, do primitivo, do emotivo, do encantamento e sem ser uma cidade dentro da outra, como são as grandes metrópoles.
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