Coimbra: cidade, património e turismo

Coimbra: cidade, património e turismo
Carina Gomes
Intervenção na Sessão "Coimbra - Cultura e Turismo"
Organização: Concelhia de Coimbra do Partido Socialista


























Texto da Intervenção



Boa noite a todas e a todos. É com enorme prazer que estou aqui, hoje, com a missão de refletir acerca do panorama turístico da cidade de Coimbra. Quero começar por agradecer o convite do meu amigo António Vilhena que me lançou o desafio de trazer a esta sessão um olhar académico sobre o contexto de Coimbra como cidade turística.

Falar acerca das condições em que o setor turístico se tem desenvolvido nesta cidade não é uma tarefa simples. Desde logo, porque se trata de uma questão que nos toca a todos: habitantes, estudantes, trabalhadores, utilizadores ou simplesmente amantes da cidade. É, por isso, um assunto que surge recorrentemente, em vários contextos, mais ou menos informais, associado a propostas que nem sempre são claras ou esclarecidas, ou a soluções que apenas aparentemente são de fácil concretização.

Não quero com isto desvalorizar tais apreciações ou propostas. Ao contrário, julgo que muitas têm potencialidade suficiente para, se usadas de forma informada e criativa, gerarem efeitos positivos na cidade. No entanto, para saber o que fazer com tais ideias é necessário um conhecimento profundo, sistemático e organizado sobre a realidade social, económica, política e cultural desta cidade. É precisamente nesta tarefa que tenho apostado ao logo dos últimos anos, tentando produzir conhecimento académico útil acerca do papel e do estatuto do turismo na cidade de Coimbra e acerca dos desafios e das potencialidades que o setor coloca à cidade. Tal trabalho tem sido desenvolvido, nomeadamente, por comparação e confronto entre o panorama turístico de Coimbra e o de outras cidades portuguesas e espanholas (Gomes, 2012a e 2013). Desde logo, porque acredito que podemos e devemos aprender com as experiências de outras cidades, ao invés de partimos para experiências turísticas urbanas com um pioneirismo frequentemente ingénuo.

Posto isto, gostaria de partir de uma ideia que me parece fundamental: a da importância que detêm hoje as atividades de turismo para os países e as regiões de destino. Ao contrário de grande parte das atividades económicas, o turismo não parou de crescer nos últimos anos. Na verdade, nos últimos 25 anos, os fluxos turísticos cresceram 1% acima do PNB Mundial. Mesmo em 2011, e apesar do agravamento da crise na Zona Euro, das perturbações e conflitos políticos em países europeus e árabes, entre outros eventos disruptivos, a procura turística mundial aumentou 5% em relação ao ano anterior e foi até registado um novo recorde no volume da procura (IPK International, 2008a, 2008b, 2010, 2011). Neste crescimento generalizado destaca-se, nomeadamente, a consolidação das cidades como mercado significativamente relevante (LAgroup & Interarts, 2005).

Numa ótica estritamente económica, o turismo é atualmente encarado como um elemento potenciador de revitalização dos lugares, ao possibilitar que as regiões de destino usem os seus diversos recursos com fins lucrativos. Na verdade, os modos como as localidades reatualizam as suas imagens e significados e os transformam em instrumentos estratégicos de promoção revelam bem a centralidade que o turismo adquiriu nas últimas décadas. Hoje em dia, cidades, regiões e países esperam encontrar no turismo uma alternativa que lhes permita contornar as oportunidades económicas limitadas de que dispõem (Gomes, 2012b).

Se começaram por escapar à massificação inicial do turismo, as cidades foram progressivamente descobertas com objetivos turísticos e lúdicos a partir dos anos 1980, representando, hoje, um dos destinos preferenciais de turistas e visitantes em geral. O turismo massificado acabou por incorporar as cidades e, principalmente, os seus centros históricos e, a partir desse momento, os interesses por parte dos produtores de serviços turísticos, dos promotores oficiais locais e dos consumidores não têm parado de crescer.

Face a este panorama económico global, há 3 interrogações que eu gostaria de colocar e a partir das quais me parece estimulante discutir Coimbra enquanto cidade que se pretende turística.



1. Podemos, desde logo, interrogar-nos sobre o valor do turismo para Coimbra. Podemos perguntar: o que vale o turismo para Coimbra?

Esta interrogação remete, necessariamente, para indicadores numéricos que permitem medir a importância das atividades económicas direta ou indiretamente relacionadas com o setor do turismo na cidade. Nesse sentido, gostaria de descrever sucintamente alguns dos dados mais relevantes a este respeito.

Como grande parte do mundo ocidental, Coimbra é um município onde reinam as atividades do setor terciário. O “comércio por grosso e a retalho” representa cerca de 21% do total das empresas e sociedades do concelho. As atividades de “alojamento, restauração e similares” correspondem a 6,4% do total e as “atividades administrativas e dos serviços de apoio”, onde se incluem as agências de viagens, operadores turísticos, serviços de reservas e atividades relacionadas, representam 10,1% do total de empresas e sociedades do concelho. Embora não permitam mais do que uma aproximação à realidade da cidade, estes dados apontam, ainda assim, para o fraco volume das atividades económicas que estão direta ou indiretamente ligadas ao turismo (Gomes, 2013).

De um outro ângulo, sabemos que Coimbra possui 22 unidades hoteleiras (5,3% da Região Centro), a que correspondem 2.230 camas que devem ser ocupadas por hóspedes que chegam à cidade (5,7% da Região Centro). No ano de 2010, ficaram alojadas em Coimbra mais de 240 mil pessoas (240.779), cuja estadia média foi de 1,5 noites. E aqui reside, como é sabido, um dos manifestos motivos de desânimo dos empresários locais que lamentam a ausência de uma estratégia mais agressiva para cativar mais visitantes e prolongar as suas estadias (Gomes, 2008).

Sabemos, ainda, que a Alta da cidade constitui um dos principais pontos de atração dos fluxos turísticos que se dirigem à cidade e que tal procura se deve, sobretudo, ao facto de esta zona revelar uma organização em torno da notoriedade urbanística e simbólica da Universidade. De resto, a presença turística em Coimbra tem-se pautado por uma forte concentração na zona da Universidade.

Esta é uma das principais atrações turísticas de Coimbra, sendo apenas ultrapassada, em número de entradas pagas, pelo Portugal dos Pequenitos. A Universidade supera, por ano, as 200.000 entradas pagas e, embora não sejam divulgados dados concretos, sabemos que o número de entradas no Portugal dos Pequenitos é superior. Embora a riqueza gerada por esta procura seja de extrema importância, parece-me que, mais interessante do que calcular as receitas obtidas pelas duas instituições – Universidade e Portugal dos Pequenitos – seria medir os efeitos multiplicadores desta procura sobre o restante território da cidade. Segundo o que venho apurando, tais efeitos são frágeis e voláteis, desde logo se considerarmos que mais de um terço dos visitantes (36%) (Fortuna, Gomes, Ferreira, Abreu e Peixoto, 2012: 68-69) despende menos de 6 horas na cidade.



2. Face a tal cenário, gostaria de passar para a segunda interrogação da minha intervenção. De um outro ponto de vista, podemos agora interrogar-nos sobre o valor de Coimbra para o turismo. Num momento em que a cidade acaba de ser certificada pela Unesco como Património Comum da Humanidade, muitos têm sido os discursos sobre os resultados esperados de tal distinção. É precisamente agora que devemos perguntar: o que vale Coimbra para o setor do turismo?

Como destino turístico, Coimbra é sobretudo uma cidade de passagem. Segundo um estudo (Gomes, 2013) desenvolvido a partir da modalidade de turismo organizado (ou seja, aquele que é planeado por operadores turísticos e comercializado por agências de viagens), em 25% dos circuitos turísticos que passam por Coimbra, os turistas permanecem na cidade até 3 horas, e em metade dos casos ficam na cidade por um máximo de 5 horas.

Acresce que apenas para 8,6% dos visitantes Coimbra é o único ou o principal destino das suas viagens, ao passo que, para a esmagadora maioria, Coimbra é um destino igual a outros ou mesmo um lugar de passagem para o principal destino da viagem (Fortuna, Gomes, Ferreira, Abreu e Peixoto, 2012: 72). Tal condição é reafirmada pelos profissionais dos operadores turísticos que declaram, num maior número de casos do que o que se esperaria, que a passagem por Coimbra se deve frequentemente à necessidade de efetuar uma paragem no decorrer do percurso entre Lisboa e Porto (Gomes, 2013). A partir destas considerações, não será exagero afirmar que, turisticamente, Coimbra não goza, no exterior, da reputação que, aqui, na cidade, lhe é atribuída.

Por outro lado, do ponto de vista dos significados promovidos acerca de Coimbra, é o imaginário da cultura universitária que sobrepuja, em relação estreita com a história, o património e a arquitetura monumental da cidade. O mesmo é dizer que é a imagem de cidade universitária que se sobrepõe a todas as outras, sendo concebida a partir da antiguidade e monumentalidade da instituição, do ambiente estudantil peculiar, da animação da vida noturna e das tradições associadas à vida académica.

Isto não significa, naturalmente, que a atratividade de Coimbra se esgote no domínio universitário. Significa, isso sim, que os outros tipos de recursos que Coimbra possui não são valorizados na mesma medida pelos atores que externamente promovem a cidade. A Coimbra que daqui resulta é uma Coimbra fragmentada, simbólica e geograficamente limitada e, portanto, resumida a uma versão circunscrita da cidade real e vivida.

Vale a pensar refletir sobre o seguinte: se o turismo tem a capacidade de promover a regeneração económica das cidades e a valorização das suas características históricas, culturais e simbólicas, ele tem também o poder de des-qualificar, des-significar e des-diferenciar as cidades, contribuindo para o esvaziamento e a sintetização dos seus conteúdos e significados.

Tal situação é mais preocupante quando se percebe que a própria cidade tem dificuldade de, a partir de si própria para o exterior, oferecer uma outra imagem turística que não seja a que está centrada em torno da Universidade, da sua história e memória, da sua arquitetura e simbolismo. No entanto, se alguma coisa os estudos recentes sugerem é que a vitalidade turística de uma cidade da dimensão de Coimbra se reforça, tanto mais, quanto mais a sua imagem turística se compatibilizar com as restantes dinâmicas sociais, económicas e culturais que alimentam a vida quotidiana local (Fortuna, Gomes, Ferreira, Abreu e Peixoto, 2012).



3. E surge assim a minha terceira interrogação: agora que Coimbra integra a Lista do Património Mundial da Unesco, o que vale o património para Coimbra?

Desde que as cidades se transformaram em destinos turísticos que o património e a arquitetura monumental se converteram em produtos turísticos cada vez mais apetecíveis. Na verdade, o fascínio turístico pelas cidades esteve desde sempre relacionado com a sua temporalidade.

Se é certo que os patrimónios, sejam eles edificados ou socioculturais, artísticos, linguísticos ou humanos, constituem um dos fatores mais relevantes de atração de fluxos turísticos, é também certo que a própria procura turística tem vindo a transformar-se. Hoje, diz a literatura especializada, os turistas já não estão apenas interessados num olhar turístico (Urry, 1990) passivo e sobretudo contemplativo, associado a uma postura relativamente desligada da realidade visitada. Pelo contrário, os turistas têm consciência da sua condição de turistas. A atitude passiva de outrora está a ser substituída por uma posição reflexiva, em que o turista pretende ser, ao mesmo tempo, a fonte e objeto de contemplação, o consumidor e o produtor, a audiência e o executante (Gomes, 2012b). Assim defendem as retóricas do turismo criativo (Richards, 2009), que destacam a necessidade de promover a oferta de oportunidades para que os turistas desenvolvam o seu potencial criativo, através do comprometimento e da participação ativa nos modos de vida e nas experiências típicas dos locais visitados.

De um outro ângulo, é também certo que o título de Património Mundial contribui de forma significativa para ampliar o volume dos fluxos turísticos para os locais certificados pela Unesco. Está provado, aliás, que são os países detentores de um maior número de bens patrimonializados pela Unesco os mesmos que ocupam os lugares de topo na hierarquia mundial dos destinos de turismo internacional (Peixoto, 2000).

Espera-se, portanto, que também em Coimbra o título de Património Mundial contribua para consolidar os fluxos da procura turística. De tal expectativa dão conta os discursos inflamados que recorrentemente têm surgido na comunicação social. Neste particular, há uma série de aspetos a ter em consideração e com os quais termino.

Em primeiro lugar, até que ponto e em que medida esta distinção da Unesco efetivamente engrossará as fileiras de turistas que procuram a cidade? Não podemos esquecer-nos que, num momento em que 981 bens fazem parte da Lista da Unesco, o estatuto de Património Mundial não representa já a distinção como constituía nos anos 1980, quando a candidatura original de Coimbra começou a ser preparada.

Em segundo lugar, e admitindo que a procura turística para a cidade aumentará, que fluxos serão atraídos para a cidade? Os mesmos que agora a procuram por um máximo de 5 horas? Ou terá a cidade condições de oferecer propostas alternativas para 3 ou 4 dias, como outras cidades europeias que são também Património Mundial? Para tal, sendo essa a intenção, Coimbra tem obrigatoriamente que ser repensada como uma cidade moderna virada para o futuro, libertando-se de uma estratégia de valorização patrimonial passadista que vem dando origem a um presente deficitário (Fortuna, Barreira, Bezerra e Gomes, 2013), ao aprisionar a cidade na sua própria história e memória. Embora encha a cidade de orgulho, não pode ser o passado a organizar o presente de Coimbra. Diria, ainda, que não se pode permitir que o passado autorize Coimbra a possuir complexos de superioridade face a outras cidades da Região Centro e mesmo do país.

Nesse sentido, e tal como argumentamos no livro “A Cidade e o Turismo”, “o desafio de Coimbra é também o de escapar quer à estereotipação passadista, quer à descaraterização da sua imagem pelos mercados externos, assumindo maior iniciativa e protagonismo na definição do seu perfil turístico e fazendo-o em benefício da sua identidade e das oportunidades de vida dos seus cidadãos” (Fortuna, Gomes, Ferreira, Abreu e Peixoto, 2012: 140).

Se a Coimbra Património Mundial continuar a ser somente a Coimbra da Universidade, que da autoridade dos seus mais de 800 anos olha sobranceira do alto de uma colina para o resto da cidade, dificilmente serão significativos os efeitos positivos de tão aspirada distinção.



Referências Bibliográficas:

Fortuna, Carlos; Barreira, Irlys; Bezerra Roselane; Gomes, Carina (2013), “O passado das cidades: Revalorizações patrimonialistas em Fortaleza e Coimbra”, in Carlos Fortuna; Rogerio Proença Leite (orgs.), Diálogos Urbanos: Territórios, Culturas, Patrimónios. Coimbra: Edições Almedina, 261-289.

Fortuna, Carlos; Gomes, Carina; Ferreira, Claudino; Abreu, Paula; Peixoto, Paulo (2012), A Cidade e o Turismo: dinâmicas e desafios do turismo urbano em Coimbra. Coimbra: Almedina.

Gomes, Carina (2013), Cidades e Imaginários Turísticos: um estudo sobre quatro cidades médias da Península Ibérica. Tese de Doutoramento em Sociologia: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Gomes, Carina (2012a), "Novas imagens para velhas cidades? Coimbra, Salamanca e o turismo nas cidades históricas", Sociologia, XXIII, 37-49.

Gomes, Carina (2012b), "Turismo", in CES (org.) Dicionário das Crises e das Alternativas. Almedina: 209.

IPK International (2011), ITB World Travel Trends Report 2011/12.

IPK International (2010), ITB World Travel Trends Report 2010/11.

IPK International (2008a), ITB World Travel Trends Report 2008/2009.

IPK International (2008b), World Travel Trends Report.

LAgroup & Interarts (2005), City Tourism & Culture – The European Experience. Report produced for the Research Group of the European Travel Commission (ETC) and for the World Tourism Organization (WTO).

Peixoto, Paulo (2000), “O património mundial como fundamento de uma comunidade humana e como recurso das indústrias culturais urbanas”, Oficina do CES, 155.

Richards, Greg (2009), “Tourism Development Trajectories – From Culture to Creativity?” Disponível em: . Urry, John (1990), The Tourist Gaze: Leisure and travel in contemporary societies. London: Sage Publications

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