Ausências e emergências nos imaginários turísticos urbanos

Do desenvolvimento do turismo moderno ao turismo nas cidades
A partir da década de 1970, as interações transnacionais intensificaram-se de forma nunca antes vista, de tal forma que, globalmente, as sociedades modernas se tornaram cada vez mais sociedades em movimento, moldadas por mudanças impressionantes na experiência da mobilidade e da viagem. Essa mobilidade foi desenvolvida e obedeceu a lógicas de organização capitalista.
Foi neste contexto que o turismo adquiriu, sob vários ângulos, uma importância crescente. Por um lado, as atividades turísticas e de lazer vêm ganhando um valor crescente na vida das populações ocidentais, constituindo dimensões importantes da vida moderna. A par disso, os fenómenos do lazer e do turismo vêm-se revelando decisivos na reorganização dos territórios e nas políticas de planeamento, com uma especial visibilidade nos espaços urbanos. Por outro lado, revelando boas perspetivas de expansão futura, o setor alimenta uma série de outras atividades económicas, constituindo um importante fator de desenvolvimento económico de muitas regiões de destino. Pelo “impacto específico nas condições locais” enquanto prática e imperativo transnacional (Santos, 2001: 71 e 2006b: 406), o turismo pode ser encarado como uma forma de globalismo localizado.

Barcelona. Foto da Autora.
Na segunda metade do séc. XX, um tipo singular de turismo foi ganhando um fulgor renovado: aquele “que se desenrola em contextos urbanos, particularmente os que registam uma forte incidência de factores arquitectónicos, histórico-arqueológicos e monumentais” (Fortuna, 1999: 48). Se começaram por ficar à margem do turismo massificado, as cidades e os seus centros históricos constituem, hoje, um dos grandes destinos do turismo, gerando interesses por parte de produtores e consumidores (Page, 1995). O valor de mercado que passou a ser associado às cidades transformou o seu passado e os seus centros históricos num produto do presente. Como refere C. Fortuna (1999: 57), tudo nas cidades se tornou, por esta via, negociável e mercadorizável: “a «indústria» do turismo objectifica e mercadoriza as cidades e os monumentos, a natureza e as paisagens, os costumes e os sentimentos”. Mas sobretudo nas cidades que enfrentam oportunidades económicas limitadas, o turismo passou a ser encarado como uma alternativa importante, possibilitando a revalorização das economias locais.

Turisticação e ludificação dos territórios
A consciência de que a história, o património, a arquitetura e as culturas locais são produtos turísticos cada vez mais apetecíveis tem levado a que autoridades e intervenientes locais invistam progressivamente na conversão desses elementos em recursos rentabilizáveis pelo turismo. Nos últimos anos, muitas cidades têm vindo a ser alvo de políticas de valorização e promoção, com o objetivo de criar imagens agradáveis e atrativas. Assiste-se, neste quadro, à conceção de territórios lúdicos, isto é, lugares ou cenários que, ou foram pré-definidos para fins lúdicos, ou foram alvo de uma “reavaliação económica que prevê que estes se tornem ludicamente atractivos” (Baptista, 2005: 47).
A ludificação dos territórios e o investimento no turismo envolvem, a meu ver, duas dimensões intimamente articuladas: por um lado, a produção e a ordenação físicas do espaço urbano e das atividades que nele se concentram; por outro, a produção ou a (re)criação de imaginários sobre a cidade e de imagens promocionais. Daqui emergem efeitos de animação e espetacularização das cidades, como produto do trabalho de atores que operam no planeamento urbano, na arquitetura, na decisão política, na promoção turística e em muitos outros contextos de intervenção no ambiente urbano.
Os modos como a cidade turística é concebida, imaginada e produzida por esses atores não podem ser analisados senão à luz de uma discussão sobre as lógicas e os condicionalismos que estão envolvidos nesse trabalho de (re)produção da cidade e, em especial, dos centros históricos, como espaços privilegiados de experiência turística. Fruto da importância que as atividades turísticas vêm adquirindo no espaço urbano, os agentes do setor turístico tornam-se cada vez mais influentes na produção desse espaço: ainda que de forma indireta, pela influência e pressão que exercem sobre os decisores e os técnicos urbanos; ou, mais diretamente, por via do trabalho simbólico que exercem na produção e difusão de imagens sobre a cidade.
Uma vez que qualquer cidade vivida e imaginada “possui um vasto manancial simbólico […] com os seus espaços de culto, os seus altares e, inversamente, os seus interditos” (Lopes, 2001: 181), a sua promoção passa necessariamente por processos de seleção e visibilização de algumas das suas características e de esquecimento ou desvalorização de outras; de criação de sistemas de imagens que possam ser usadas para a construção de um imaginário turisticamente atrativo. Esta dualidade permite pensar o turismo em geral e, especificamente, o trabalho de promoção turística, como uma atividade abissal, no sentido que B. de Sousa Santos lhe atribui. Segundo Santos (2009: 23), o pensamento abissal consiste “num sistema de distinções visíveis e invisíveis” em que as distinções invisíveis “são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’”. Se pensarmos, pois, no papel e no poder que o turismo tem numa cidade, podemos imaginá-lo como o criador de uma linha radical.

Os dois lados da linha na cidade
Qualquer imaginário turístico (re)inventado pelos agentes e promotores do turismo envolve aproximações e distâncias à cidade real. Nessas aproximações ou distanciamentos, surge ‘deste lado da linha’ a cidade turística: com os seus altares, os seus lugares de destaque, a sua história oficial, as suas personagens heroicas, os seus valores tradicionais, arquitetónicos e monumentais. Surge, ‘deste lado da linha’ a cidade apresentada como autêntica, aquela que tem valor turístico, porque é aquela que melhor se vende para consumo turístico. Vale a pena referir que se trata, aqui, de uma autenticidade que é frequentemente encenada, na medida em que, como defende D. MacCannell (1999), a realidade que é dada a conhecer ao turista não é mais do que uma encenação, uma realidade manipulada ou fabricada pela indústria turística (Gomes, 2008).
Se ‘deste lado da linha’ permanecem os elementos atraentes, ‘do outro lado da linha’, pelo contrário, esconde-se a cidade que não é vista como suficientemente atrativa para ser mercantilizada: escondem-se versões alternativas da história e da cultura da cidade. A divisão entre os dois lados da linha provoca, segundo B. S. Santos (2009: 23), o desaparecimento do ‘outro lado da linha’ enquanto realidade. Por esta via, esse ‘outro lado da linha’ “torna-se inexistente e é mesmo produzido como inexistente”, não existindo “sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível”. 

Esquema concetual dos "dois lados da cidade". Elaboração da Autora.
 Para o ‘outro lado da linha’, criada pelo poder capitalista e hegemónico do turismo, são relegadas as ausências da cidade turística – aqueles outros elementos invisibilizados, afastados para a posição de interditos ou de esquecimentos. Neste quadro, tal como Santos (2009: 31) afirma sobre o pensamento moderno ocidental, o turismo pode também ser encarado como uma atividade hegemónica que, ao mesmo tempo, cria e nega ‘o outro lado da linha’. Construindo a cidade turística, pela apresentação de uma versão reduzida da cidade real, de onde desaparecem os elementos urbanos classificados como não atrativos, é o próprio setor turístico que cria o ‘outro lado da linha’, negando-o simultaneamente, porque o outro lado permanece ausente dos materiais de promoção turística.
Através do que designa por sociologia das ausências, Santos (2006a: 95) propõe uma investigação que seja capaz de “demonstrar que o que não existe é, na verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe”. Pela via da sociologia das ausências, apercebemo-nos que o ‘outro lado da linha’ onde estão os elementos urbanos não promovidos turisticamente tem uma existência tão real na cidade quanto os elementos promovidos ‘deste lado da linha’. Levando esta ideia ao extremo, poderíamos até afirmar que, no âmbito do turismo, ‘o outro lado da linha’ – a cidade invisível – é mais real do que ‘este lado da linha’ – a cidade visível –, na medida em que este último está muito mais sujeito aos efeitos da encenação e da espetacularização, típicos da indústria turística na cidade.
A fronteira entre a cidade visível e a cidade invisível não é apenas simbólica, mas é também material e política. Uma investigação que pretenda analisar os efeitos simbólicos do setor turístico na cidade terá necessariamente que interrogar-se sobre os imaginários que circulam na esfera da promoção turística: que aspetos da cidade são postos em relevo e que dimensões da cidade são esquecidas? Que qualidades, reais ou imaginárias, são salientadas? Que perfis de cidade emergem no imaginário turístico? Que relações estabelecem esses perfis com as características materiais e socioculturais da cidade contemporânea, da sua história e da sua autorrepresentação?


Referências Bibliográficas:
Baptista, Luís Vicente (2005), “Territórios lúdicos (e o que torna lúdico um território): ensaiando um ponto de partida”, Fórum Sociológico, 13/14 (2ª série), 47-58.
Fortuna, Carlos (1999), Identidades, Percursos, Paisagens Culturais: Estudos Sociológicos de Cultura Urbana. Oeiras: Celta Editora.
Gomes, Carina Sousa (2008b), “Imagens e narrativas da Coimbra turística: Entre a cidade real e a cidade (re)imaginada”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 83, 55-78.
Lopes, João Teixeira (2001), “Identidades, Estilos, Repertórios Culturais. Um certo ponto de vista sobre a cidade”, in Magda Pinheiro, Luís Vicente Baptista e Maria João Vaz (orgs.), Cidade e Metrópole. Centralidades e Marginalidades. Oeiras: Celta Editora, 181-194.
MacCannell, Dean (1999), The Tourist: A new theory of the leisure class. London: Macmillan.
Page, Stephen (1995), Urban Tourism. London: Routledge.
Santos, Boaventura de Sousa (2009), “Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”, in Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (orgs.), Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 23-71.
Santos, Boaventura de Sousa (2006a), “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”, in Boaventura de Sousa Santos, A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Porto: Edições Afrontamento, 87-125.
Santos, Boaventura de Sousa (2006b), “Para uma concepção intercultural dos Direitos Humanos”, in Boaventura de Sousa Santos, A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Porto: Edições Afrontamento, 401-435.
Santos, Boaventura de Sousa (2001), “Os processos da globalização”, in Boaventura de Sousa Santos (org.), Globalização: Fatalidade ou Utopia?. Porto: Edições Afrontamento, 31-106.


Versão completa e citável do texto aqui.
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.        
Nas citações manteve-se a versão portuguesa pré-acordo.


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Comentários